Esse blog é uma homenagem às minhas avós, às avós do meu filho e a todas as mulheres que tem a doce experiência de serem avós. Acredito que no âmbito familiar poucas coisas são tão saudáveis quanto o estar na casa da vovó, desfutar de sua companhia, de seus quitutes e fazer descobertas diárias sobre o mistério que envolve a distãncia entre as coisas do tempo da vovó e a nossa vida cotidiana, principalmente quando somos crianças.

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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Padre Lima pediu Tia Ail para sair da igreja*

Tia Ail é mesmo uma dondoca. Na verdade, ela é mais prima do que irmã de mamãe. É uma das quatro crianças que Tia Fifina, irmã de Vovó, deixou por aqui para ir ali e, nunca mais buscou...
Quando Vovô morreu, as coisas ficaram um tanto quanto atrapalhadas. Vovó ainda muito jovem, tinha nove filhos legítimos e esses quatro abandonados à sorte, que ela lógico, não iria desamparar. O lado financeiro da família era preocupante, mas tentava dar-se um jeito.  
Certo dia, dona Pia, uma rica senhora que morava na Capital e passava férias na fazenda ao lado, viu Tia Ail. Era uma menina muito bonitinha e da idade de sua filha caçula. Dona Pia propôs à Vovó levar tia Ail para morar com ela e garantiu que a colocaria numa boa escola. O intuito era que sua filha caçula, bem mais nova do que as outras, tivesse uma companhia. Vovó permitiu.
E assim, tia Ail que na época tinha apenas oito anos, passou a ser criada numa casa e em uma cidade de hábitos bem diferentes e modernos. Estavam nos anos sessenta e a ruptura de certos padrões tradicionais aos poucos iam acontecendo. Tia Ail aprendeu a usar mini saia, roupa decotada, maquiagem e quando adolescente ficou muito rebelde e passou também a fumar. 
Depois de concluir seus estudos e não querendo prestar serviços como vendedora na loja da família de dona Pia, resolveu voltar para casa de Vovó, pois a menina para qual ela foi servir de companhia estava prestes a se casar.
Voltou, mas seus hábitos já não eram os mesmos. Começou aí uma sequência de problemas na convivência que passou a ter na nossa comunidade, pois tradição por aqui ainda tinha lugar garantido, e mulheres muito avançadas eram vistas como mulheres "à toa", como dizem ainda Vovó e suas amigas.
O maior escândalo que Tia Ail provocava era com o tamanho da saia que usava. E ainda por cima, pregueada, o que ao vento deixava tudo de fora.
Segundo Vovó, certo dia tia Ail foi à missa da noite. Estava frio, mas a danada da saia ela não largou em casa. 
Entrou e sentou-se bem na frente. Tudo ia bem até que o Padre Lima avistou Tia Ail e arregalou os olhos, dizendo:
- Nós temos no guarda-roupas vestimentas para irmos ao trabalho, para irmos à escola, para irmos às festas e temos que ter também algo adequado para virmos à igreja. A moça que está de mini saia, queira respeitar a casa de Deus, que é lugar de resignação e oração. Por favor, saia!
Dizem que tia Ail saiu sem falar nada. E o pior, ficou ainda mais falada do que nunca.
Mas ela não se emenda...
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A história postada aqui é baseada em fatos reais vivenciados por meus familiares . Desse caso eu me lembrei ao ouvir nos noticiários de ontem o caso da uma menina  convidada a sair da igreja pelo tipo de roupa que usava, o que era muito comum até os anos 70.

domingo, 30 de setembro de 2012

Dona Conceição Coitchada

Hoje me lembrei de dona "Conceição Coitchada", vizinha de Vovó por muitos anos. Morava no terreno ao lado e como as casas foram construídas bem perto da cerca, nós e os dela nos víamos diariamente.
Era uma senhora bem idosa. Usava uns vestidos de tecido de algodão com estampas bem discretas, todos com mangas três quartos, saia franzida e comprida até a altura dos tornozelos. Por cima do vestido trazia sempre um avental de brim em tom escuro. Na cabeça  um lenço com estampas azuis e brancas amarrado atrás das orelhas. 
Não tinha vaidade. Nunca a vi de brincos ou qualquer outro acessório, muito menos com aparência de ter usado cosméticos. Era muito simples e tímida. Tinha a fala mansa, um pouco rouca e a tudo que ouvia as pessoas falarem respondia: coitchada!
Morava numa casa caiada e com janelas de madeira em peça única, que se fechavam por uma tremela..
Um telhado de quatro águas bem velho cobria a morada. Algumas telhas já haviam ficado pretas de fumaça. A madeira só resistia ao peso das telhas porque era daquelas escolhidas a dedo no mato. O piso de vermelhão parecia nunca ter tido contato com cera. Os móveis além de poucos, estavam em estado de dar dó.
Viúva, morava com a filha Maria, noiva do irmão de nossa tia torta, Neném, casada com tio teresão, que além de trabalhar fora acabava assumindo grande parte do serviço doméstico, tarefa da qual a esposa não era fã. Maria era noiva desse homem, cujo o nome me falha a memória, há uns 20 anos... Diziam que ele não se casava porque era cigano.
Além de Maria, dona conceição tinha também um filho solteiro em casa, mas esse trabalhava durante o dia e no final da jornada ia direto para o butiquim, principalmente para a venda do João Bica. De lá subia o caminho de casa tropeçando nas pernas.
Uma coisa boa era o quintal de dona Conceição. Quantas frutas! E algumas bem ao lado da cerca e com galhos para o lado do terreno de Vovó. Não que faltessem frutas no nosso quintal, é que as do quintal da vizinha parecia-nos melhores. Ah! Não posso esquecer da rama de chuchu que subia na cerca e produzia até na época de seca.
Bom, hoje me lembrei de dona Conceição que já passou dessa para melhor. Faz um bom tempo. Seu golpe maior foi a morte do filho Quinzinho, que de tanto beber acabou morrendo de forma trágica.
Certo dia,  foi beber num butiquim do lado de lá da rodovia. Ao voltar para casa  foi surpreendido por um carro que o mandou para cima como se fosse uma pipa ao vento. 
A partir daí ela  ficou a cada dia mais triste, adoeceu e se foi. Coitchada!
Já sei, todos querem saber como ficou Maria!? Digo que nem assim, ficando sozinha, com o cigano ela conseguiu se casar. Está bem viva, morando na mesma casa que continua resistindo ao tempo diante do mesmo quintal. 

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Lá vai Maria, feliz da vida!

Todos de casa hoje fomos à missa na igreja de Nazaré por intenção da alma de vovô que se estivesse vivo faria hoje 106 anos. Assim que o padre disse "vão em paz que o senhor os acompanhe", sai para comprar as velas que deixamos acesas no velório.
Fui entrando na lojinha da sacristia e logo percebi que ela estava ali, como também está em todas as partes por onde se anda nessa vila e até nas redondezas. Eram apenas sete horas e ela já tinha percorrido meio mundo, assistido missa, tomado a comunhão e agora escolhia um terço para comprar. É assim todos os dias, e a moça que atende no balcão ainda diz que acha o seu jeito uma gracinha... Pensando bem Maria é mesmo muito boazinha.
Não sei se ela tem família, só a vejo de chinelos bem velhos e limpinhos, com um vestido azul claro e uma blusa de linha branca sempre aberta por cima do vestido, faça chuva ou sol, calor ou frio. Talvez pela idade anda um tanto quanto corcunda, escorada numa bengala e carrega uma sacola dependurada no braço esquerdo. Tem os cabelos bem curtinhos e já bem grisalhos. No pescoço trás um terço de lágrima de Nossa Senhora e umas correntes com medalhas de vários santos dos quais é devota. Anda sempre ligeiro e não é para menos com aquele peso de pena.Toma fé de tudo ao seu redor. Quando vê um comércio de banca, ambulante ou lojinha sempre pára e dá uma olhada, mas nunca leva nenhuma mercadoria.
E assim vai saindo... Lá vai Maria, feliz da vida!

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Afinal, veio vendê ou tecê conversa?

Segui acompanhando as duas até Vovó. E, claro fiquei por ali com desculpa de arrumar as flores no vaso que estava em cima da mesa.
- Como vai vossa pessoa? Perguntou Sá Luzia.
- Vou bem graças a Deus. E a senhora?
- Ah! Vou indo como Deus quer.
- Trouxe biscoitos?
- E dos bons! Virei a fornada antes do galo cantá.
- De certo Sá Luzia. Bárbara! Leve a capanga com os biscoitos lá na cozinha e pede pra Zefa guardar enquanto eu acerto os cobres aqui com sua mãe, minha filha.
- Chica! antes de ocê contar os cobre, quero te fazer um alerta.
Vovó parou de tirar o dinheiro do bolso da casaca e olhou assustada:
- O que foi Sá Luzia? Sou toda ouvidos, pode falar.
-Chica! Tem gente miúda daqui dos seus andando lá pelas bandas do capuera do açude seco. Eu vi uns quatro... Dois minino, uma minina e um outro que não consegui vê direito purque correu pra trás do piquizêro quando me viu.
- Que coisa Sá Luzia! O que há de ter levado essa garotada sem juízo tão longe?! Pode deixar que vou tratar disso.
- De certo Chica. Só Tô te falano porque ocê sabe o que eu passei quando a bicha pegou Pureza por lá... Não vim fazê candonga, não! Deus que me perdoe! Inté tomei a comunhão na missa de hoje, antes de passá aqui.
Vovó bem sabia que havia um certo exagero naquilo, mas claro, iria nos dar castigo por termos saído sem permissão. Fizemos tudo direitinho para ninguém perceber e Sá Luzia estragou tudo... Agora não teremos mais tardes livres no campo de araçás!
Sá Luzia, como muita gente aqui da região, tem muita superstição. O ocorrido com Maria Pureza é tão antigo! Do tempo que Vovó ainda era menina, mas o povo daqui faz questão de manter a história viva e com isso sustentam uma superstição que prejudica os mais novos.
Pureza era uma das filhas de Sá Luzia. Contam que numa quinta-feira santa ela foi mandada pela mãe a buscar lenha para acender o fogo na sexta-feira da paixão.
Naquele tempo não se podia catar lenha nem fazer nada na sexta-feira da paixão, só mesmo acender o fogo para esquentar o almoço que era preparado no dia anterior.
Pureza pegou a corda, o facão e pano de rodia. Seguiu para capuera onde tem muito pau de lenha seco pelo chão. Arranjou um feixe bem grande, separou e aproveitou para apanhar uns araçás...
Entre uma planta e outra achou um pé bem carregadinho e foi logo enfiando a mão para separar os melhores por galhos. Nessa hora, uma cascavél lhe deu um bote e a moça caiu pouco distante do feixe de lenha.
Entendendo que a filha estava demorando por demais, Sá Luzia, que ainda nem usava manguara, seguiu para capuera em busca de Pureza. Não foi difícil encontrar o feixe de lenha amarrado quase à beira do caminho, mas doloroso por demais encontrar a filha caída e desfalecida. 
Tentou reanimá-la inutilmente e então, correu para buscar ajuda com os seus. No caminho, deu de encontro com Zé da Caixa e seus companheiros da banda e foi logo contando o ocorrido e pedindo ajuda. Os homens acharam que Pureza meia morta. Pelo roxo no braço, Zé da Caixa foi logo adiantando:
- Foi uma bicha! E tem que achá ...
- Valei-me minha Nossa Senhora! Num deixa essa peçonha matá minha Pureza... Ô Jesus, pelo sangue de Cristo!
Os homens deram uma vasculhada nos arredores e logo viram a cobra enroscada debaixo do pé de araçá.
- Olha ela ali! Mostrou Tião Tramela.
Ele pegou um pau e apertou a cabeça da cobra num golpe certeiro.
Aos prantos de Sá Luzia, levaram a moça para casa. Quando entraram e colocaram o corpo em cima da mesa foi aquela gritaria...
Sá Tônica, avó de Pureza, sabia simpatia para curar veneno de cobra. Mandou trazer cachaça e uma faca bem quente. Jogou meio copo de cachaça na ferida e rasgou a pele. Tomou uma dose e chupou o sangue já engroçado e seguiu cuspindo. Depois pediu o guizo da cobra para torrar e fazer um pó que jogaria sobre a ferida.
Nessa hora, lembraram que a cobra morta ficou debaixo do pé de araçá. Logo Tião Tramela ofereceu-se para buscar o guizo. Foi num pé e voltou no outro, porém ... a cobra tinha desaparecido. Todos ficaram desesperados e como o tempo não espera um milagre acontecer, mesmo a poder de reza forte durante toda a noite, a moça amanheceu morta.
Desde então, as pessoas passaram a ter medo de andar naquela capuera. Dizem que a cobra não morreu e está escondida à espera de quem a feriu, para picar... e como cobra não diferencia gente, na dúvida acham que o melhor é não andar por lá, nem mexer nos araçás da cobra. Pode tamanha besteira?
Vendo Sá Luzia tecê conversa assim com Vovó, fiquei com muita raiva, mas também com muita pena do sofrimento e das bobagens  em que ela acredita. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Sá Luzia quitandeira


 Imagem google de sonspercutidos.blogspot

Hoje estava colhendo flores de São João na cerca à beira da estrada quando ouvi uma voz:
- Dia menina!
Olhei assustada e  respondi :
- Dia Sá Luzia!
- Tô querendo um dedo de prosa com vossa Vó.
-  Claro! Vamos chegando que a senhora já é de casa...
Parei de colher as flores e fui acompanhando as duas até a varanda onde Vovó limpava lágrimas de Nossa Senhora para fazer terços novos. Abri a porteira. Ela passou na frente e e seguiu chamando com sua voz não sei se roca ou já fraca pela idade.
- Ô de casa! Chica!? Tô entrando!
Sá Luzia sempre vem acompanhada de sua filha Bárbara, a única solteira dos dezesseis filhos que gerou. É uma moça de idade, muita acanhada, que vive de ajudar e acompanhar a mãe. É uma gente de vida simples, que se não for tratada com cerimônia fica ofendida. Por isso, larguei o que estava fazendo e fiz as vezes com as visitas. Caso contrário, levaria um pito de Vovó.
Sá Luzia é quitandeira das boas. Toda semana ela passa por aqui  trazendo muitos biscoitos para vender. Vende estrada a fora, batendo de casa em casa e mutias vezes nem precisa chegar até a cidade. Os biscoitos são vendidos no caminho. Sua fama já correu nas cidades vizinhas e muita gente que passa por aqui não vai embora sem levar as delícias feitas por ela. Dizem que é tradição de família. No tempo que Vovó era menina quem vendia as quitandas eram Sá Tônica e Sá Cota, mãe e avó dela. E pelo jeito Bárbara seguirá a tradição...
Tem um jeito muito antigo de se vestir. Usa uns vestidos longos, brancos, de algodão cru bem alvejado. Sempre o mesmo modelo de saia rodada, mangas três quartos e gola. Trás na cabeça um lenço de chita amarrado debaixo do queixo. Se faz frio , diz que é para livrar da friagem os ouvidos. Se faz calor, usa do mesmo jeito e com um sombreiro por cima. Não calça sapatos fechados, somente um precata de couro de boi feita pelos seus. Nunca sai sem uma manguara e os biscoitos coloca numa capanga de algodão bem grande que carregada dependurada no ombro. Ela trás uma e a filha nos dois ombros. Tem a pele muita fina e enrugada. Já é quase nonagenária. 
Por essas bandas, todos se conhecem e sabem um pouco da vida de cada um. Dizem que ela nasceu no tempo dos escravos, que foi moça muito bonita e enterrou três maridos. O primeiro casamento foi aos treze anos, com um homem bem mais velho e arranjado pelo pai. Teve quatro filhos e uma vida de fartura até que o homem caiu doente e durante anos ficou cuidando do enfermo com banhos de Sol.
Viúva, encontrou um marido mais jovem e teve outros doze filhos. Viveram felizes durante anos até  que Zé Gato morreu. Nunca soube o motivo do apelido desse homem, mas os mais velhos lembram bem desse tal Zé Gato.
O terceiro casamento foi complicado. Não teve filhos. A idade já estava avançada, tanto dele quanto dela. Contam que era um homem  que andava descalço e talvez por isso acumulava bichos de pé nas rachaduras do calcanhar. Serviço para os netos de Sá Luzia, que em respeito à avó, aliviavam os pés do avô emprestado, conhecido por todos como Antônio Corona. O casamento não durou muito, mas antes de morrer Coroné arruinou a vida de Sá Luzia vendendo o terreno onde moravam e tinham roça de alimentos e criação de animais, para um fazendeiro dono das terras que ficam do outro lado do rio. Dizem que o ricasso queria o rio só para ele e vinha comprando terras que margeiam o leito.
Como era analfabeto, Coroné firmou o dedo polegar no tinteiro e carimbou o papel que passava as terras para o nome do tal fazendeiro. Sem documentos que comprovavam a posse das terras, herança de seu primeiro casamento, Sá Luzia não viu o dinheiro e ficou sem ter onde morar, tendo que se sujeitar a uma morada de sapé em terras de gente conhecida e sobrevivendo da venda de suas quitandas.
De todos os biscoitos que faz, o que mais gostamos aqui é o biscoito de araruta com rapadura. Muita gente já ganhou dela a receita, mas ninguém consegue acertar o ponto. Imagino que ela nunca fez questão de contar o segredo por completo... Os outros também são muito saborosos e Sá Luzia é daquelas que só usa a farinha e o polvilho que ela mesmo prepara. 
As mulheres da família fazem bons biscoitos também, mas Vovó é freguesa antiga e nunca deixa de comprar essas delícias. Ela sabe bem como ajudar as pessoas...

domingo, 8 de julho de 2012

Bafafá na praça

E tudo aconteceu assim...
O dia mal tinha amanhecido e um alvoroço muito grande acontecia na praça. Todos corremos para ver o que havia de certo ou  errado que reunia tanta gente e num trololó danado. Vovó não gostou da nossa curiosidade e foi logo dando seu palpite certeiro:
- É coisa de Terninho ...
Terninho é o apelido de João dos Moreira. Um sujeito metido a valentão, que só anda de terno engomado, usa um sapato maior que seu pé e um chapéu de feltro cinza todo esfarrapado.Sempre que alguém se mete a debochar de seus sapatos ele parte pra cima com toda raiva do mundo.
Não demorou muito e ficamos sabendo que desta vez o desafeto partiu de Bendito, um outro tipo valente que adora se meter na vida alheia. De longe ouvia-se os desatinos.
- Tá me chamando de pé grande?   
- Imagine ... O seu sapa ...
- É grande o suficiente para esmagar cabeça de cobra. Seu Bendituçu ....
E Terninho não parava de falar até que por um instante, do nada, fica mudo e de olhar fixo para o fundo da praça. 
Todos olham naquela direção, mas ninguém se atreve a dizer uma palavra. Lá está ela! Dona Roxona! 
Sim, ela que antes era conhecida por Quitéria de Inácio, agora é dona Roxona, por andar  usando roupas roxas desde que se tornou viúva de Inácio Cortez.
É ela o único amor da vida de Terninho. Amor não correspondido. 
Na verdade, ele nunca teve coragem de se declarar a ela. Pensava que uma mulher tão linda não haveria de querer um boçal como ele, com aqueles sapatos grandes e um chapéu surrado cobrindo-lhe a cabeleira despenteada.  
E assim, como um toque de mágica, Terninho foi se recompondo e se preparando para a chegada de sua amada. Bonita, mesmo naquele vestido roxo! Passou com um sorriso fosco, seguindo o som do sino da matriz.  
Bendito que não é bobo, foi saindo de mansinho antes que a dama passasse e o bafafá voltasse a pegar fogo. 
O povo acostumado, mas nem por isso desatento ao fato, também foi esvaziando a praça. E terninho, mais uma vez sentou-se no banco da praça à espera da missa acabar...

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Seguindo as tradições



- Cuidado prás galinha num cumê as verdura da horta, hein!
Exclamou Zefa ao fechar a cancela.
Ontem viemos para a casa de Tio Mundinho, Vô Mundinho ou Sô Mundinho? Cada um chama ele por um nome que não é seu, também nem sei qual é o seu nome de batismo, mas é certo que tem algum parentesco com Vovó. E é para cá que viemos todas as vezes que tem festa na cidade.
A carroça veio pesada. Muita carga de matula, roupa de cama e uma parafernália de coisas para a cozinha.
Vovó gosta de trazer de tudo um pouco. Disse que é para não explorar a boa vontade do dono da casa. Desconfio que há uma pitada de pãodurismo dele nessa história. Ele fica bem feliz quando chegamos e  ela prepara uns bons quitutes pelas mãos de Zefa.
Na carroça, além dos mantimentos vieram também os pequenos  com vovó. Ela deve ter debulhado uns cinco terços de rosário pelo caminho e nós só fizemos reclamar dores nas pernas pelas lombadas na estrada de terra vermelha e, contando com a sorte para não ficarmos embrenhados de carrapatos soltos entre o pó e o vento.
Até que na caminhada nem tudo foi doído. Gostamos da parada na travessia do Córrego Grande . Quando a carroça se distanciou então ... caímos n'água e nem os pitos de mamãe e nossas tias evitaram que chegássemos na cidade enlameados.
Viemos para a festa de Corpus Christ. Os tapetes são feitos à noite, depois que os homens chegam da labuta. Vovó sempre prefere vir na véspera para não perdemos os preparativos, que são até mais interessantes do que a ver a festa pronta.
Tio Mundinho não tem mulher nem filhos. Quando chegamos ele ficou bem contente e a casa passou a ser nossa. Zefa, mamãe e minhas tias deixaram tudo um brinco. E nós, aproveitamos para correr pela vizinhança em busca de novidades.
Quando a noite caiu todos se juntaram na praça. É tradição enfeitar as ruas por onde passará a procissão com o Santíssimo. 
Na casa de dona Cota ficam separados todos os anos o material que vai ser usado. As tintas desse ano foram nas cores vermelho, amarelo, branco, azul e verde. Os moldes das figuras bíblicas, flores e letras foram feitos pelo Prof. Dinaldo. Ele ensina Artes na escola velha e sempre que tem festa é chamado a conduzir os ornamentos.
A decoração com tapetes varou a madrugada e como não gosto de perder nenhum detalhe, coloquei toca e joguei um cobertor nas costas para não ser vencida pelo frio.
As senhorinhas daqui sempre fazem um agrado para quem trabalha na arrumação das ruas. Canjica, café com biscoito e chás bem quentes foram servidos de tempo em tempo até que tudo ficou pronto e fomos dormir.
Dormirmos muito tarde e acordamos logo no primeiro canto dos galos. Aqui tem muitos ... Vestimos a roupa de festa sob tremendas recomendações para não nos descompor. Tomamos café com broa de fubá e pronto. 
Ao sair pela porta da frente dei logo de cara com dona Serenita carregando a batina de padre Emílio. Branquinha!!! Com bordados dourados e vermelhos. Olhei para a praça e vi a maravilha que ficou o tapete. Sem dúvida um dia que promete, pensei.
Por alguns minutos estive observando a chegada do povo para a missa. Cada um mais elegante do que o outro. Os que são das irmandades vestem seus uniformes engomados e nenhuma criança se metendo a correr na poeira com risco de sujar a roupa. Tudo muito certinho, como deve ser nos dias de festa.
Vovó não foi à missa, nem as outras senhorinhas. Elas ficam em casa e enfeitam as janelas com colchas, toalhas, flores e muitas imagens de santos. As casas das ruas por onde passa a procissão ficam abertas para receber o Santíssimo.
Uma coisa me chamou a atenção esse ano: todas as senhorinhas ficam numa janela ou na porta de entrada da casa com o terço de "lágrimas de nossa senhora" na mão, véu sob os cabelos e chorando um choro calado, de um profundo sentimento que não consigo bem entender.
Fico pensando: será que quando eu for senhorinha conseguirei chorar desse jeito de minha janela?

quinta-feira, 15 de março de 2012

O frango do pescoço pelado

imagem de  vovogansa  
Nunca vi tamanha maldade como o que aconteceu hoje aqui na casa da Vovó.
No galinheiro, cada galinha tem um dono, o galo é do terreiro e os franguinhos Vovó separa para o almoço de domingo. A cada semana vai uns dois para a panela.
Bia mora na cidade e quase não vem ver sua galinha. Ela chocou onze ovos e nasceu só um franguinho de do pescoço pelado. As franguinhas já foram presas no galinheiro e o frango está quase um galo. Como ela veio passar o final semana, Vovó resolveu abater o frango do pescoço pelado para ela comer. 
Bia não queria. Foi só Vovó pegar a faca e o prato que ela correu para o quarto, deitou na cama e começou a chorar.
Vovó não teve piedade. Ficamos todos olhando ... Ela cortou o pescoço do frango com tanta força que ele acabou decepado. Deitou o  coitado com o pescoço no prato cheio de vinagre para preparar o sangue do molho pardo.
De repente, o frango ficou de pé e saiu cambaleando quintal a fora. Talvez ele quisesse dizer que não queria ser comido, mas todos levamos um susto e Vovó disse que era culpa da Bia, pois quem fica com pena da criação na hora do abate, acaba fazendo com que ela demore a morrer.
Só sei que depois do susto ninguém quis comer do frango. Zefa teve que fritar ovos para toda a meninada...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Aniversário da vovó N


Ontem foi aniversário de uma das avós que me inspiraram a abrir esse blog. Gostaria de estar postando aqui uma foto dela, da festinha e contar o seu nome. Mas ... ela é muito reservada e me proibiu de revelar a sua intimidade, que eu chamo mesmo é de simplicidade. E como neta ( emprestada, pois as minhas já  foram morar com "papai do céu" ) muito obediente vou mostrar só o bolo com as velinhas acesas, prontas para serem assopradas, no escuro e sem muita cantoria de emenda ...
Parabéns vovó N! Muitos anos de vida, paz e saúde.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Inspiração para fazer arte


Todos que entram no quarto da Vovó logo observam os quadros luminosos com imagens de seus santos preferidos para pedir intercessão.Há também um velho rádio de madeira usado para escutar missas, bençãos e orações, que ela liga sempre às seis horas para rezar com o locutor a Ave-Maria.
De tanto chamar a atenção pela beleza da luminosidade colorida, os quadros religiosos serviram de inspiração para uma arte. Calma! Desta vez não fui eu quem aprontou. Foi o Efigênio, filho adotivo de Vovó, que na realidade também é seu sobrinho, filho de uma irmã da Vovó que sumiu no mundo.
Não conseguindo conter sua curiosidade,  imaginou que ficaria lindo se todos os quadros funcionassem juntos. Imaginou, mas... a casa é antiga, com instalações elétricas precárias, há apenas uma tomada no quarto.
Sem recursos que pudessem resolver o problema e na ansiedade de ver os quadros piscando suas luzes coloridas, retirou os plugues, descascou os fios e fez dois rolos que prendeu em um plugue  e  ligou na tomada .... 
O resultado foi desastroso! Um curto circuito provocou o fogo que queimou os quadros da Vovó. 
Um susto  grande e ela ficou muito triste por perder seus quadros dessa forma. quadros que agora fazem parte do passado, pois iguais aqueles já não se encontra mais.
Efigênio, levou um belo choque e se assustou!
Fico pensando se conseguiu descobrir que para manipular a rede elétrica há necessidade de conhecimentos técnicos e que não se pode deixar dominar pelos impulsos da curiosidade.

sábado, 7 de janeiro de 2012

A tropa de Tãozinho Dasdor

Hoje Vovó foi conversar na porteira da estrada com o Tãozim de Dasdor, assim conhecido por ter sido casado com uma mulher que se chamava Maria das Dores e que o povo daqui chamava de Dasdor.
Ele sempre fica esperando a tropa que vem da Fazenda Três Bicas. Todo sábado os burros cargueiros chegam trazendo queijos, doces, carnes e outras coisas que ainda são produzidas por lá.
Tãozim de Dasdor já foi tropeiro nos tempos em que as tropas andavam longe. Vendo a tropa passar ele mata a saudade e chega a chorar quando houve os sinos dos burros de carga.
Enquanto espera, fica contando histórias das viagens que fez. Casos de burros empacados, pontes caídas, donzelas para quem atirava flores, comidas, bebedeiras e até encontro com onças ...
Disse que eles se levantavam de madrugada e uns iam juntar a tropa, enquanto outros faziam o café e a comida. Conta também que nem sempre encontravam pousos e algumas pousadas cobravam caro. Muitas vezes pela falta de dinheiro tinham que dormir ao relento, exigindo sacrifícios de se revezarem para proteger a tropa de ladrões e onças. Para as onças a solução era uma fogueira bem alta!
A tropa de Tãozim hoje, é uma tropa de histórias, que ele guarda na memória e não se cansa de contar, enquanto pica o fumo de rolo com um canivete afiado e enrola um cigarro de palha do qual sopra uma fumaça malcheirosa que impregna-lhe a roupa e o chapéu.
Aos 82 anos de vida, dos quais 65 viajou pelo sertão guiando cargas, passa os dias tentando reviver um mundo que não conseguiu esquecer.