Esse blog é uma homenagem às minhas avós, às avós do meu filho e a todas as mulheres que tem a doce experiência de serem avós. Acredito que no âmbito familiar poucas coisas são tão saudáveis quanto o estar na casa da vovó, desfutar de sua companhia, de seus quitutes e fazer descobertas diárias sobre o mistério que envolve a distãncia entre as coisas do tempo da vovó e a nossa vida cotidiana, principalmente quando somos crianças.

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quarta-feira, 25 de julho de 2012

Lá vai Maria, feliz da vida!

Todos de casa hoje fomos à missa na igreja de Nazaré por intenção da alma de vovô que se estivesse vivo faria hoje 106 anos. Assim que o padre disse "vão em paz que o senhor os acompanhe", sai para comprar as velas que deixamos acesas no velório.
Fui entrando na lojinha da sacristia e logo percebi que ela estava ali, como também está em todas as partes por onde se anda nessa vila e até nas redondezas. Eram apenas sete horas e ela já tinha percorrido meio mundo, assistido missa, tomado a comunhão e agora escolhia um terço para comprar. É assim todos os dias, e a moça que atende no balcão ainda diz que acha o seu jeito uma gracinha... Pensando bem Maria é mesmo muito boazinha.
Não sei se ela tem família, só a vejo de chinelos bem velhos e limpinhos, com um vestido azul claro e uma blusa de linha branca sempre aberta por cima do vestido, faça chuva ou sol, calor ou frio. Talvez pela idade anda um tanto quanto corcunda, escorada numa bengala e carrega uma sacola dependurada no braço esquerdo. Tem os cabelos bem curtinhos e já bem grisalhos. No pescoço trás um terço de lágrima de Nossa Senhora e umas correntes com medalhas de vários santos dos quais é devota. Anda sempre ligeiro e não é para menos com aquele peso de pena.Toma fé de tudo ao seu redor. Quando vê um comércio de banca, ambulante ou lojinha sempre pára e dá uma olhada, mas nunca leva nenhuma mercadoria.
E assim vai saindo... Lá vai Maria, feliz da vida!

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Afinal, veio vendê ou tecê conversa?

Segui acompanhando as duas até Vovó. E, claro fiquei por ali com desculpa de arrumar as flores no vaso que estava em cima da mesa.
- Como vai vossa pessoa? Perguntou Sá Luzia.
- Vou bem graças a Deus. E a senhora?
- Ah! Vou indo como Deus quer.
- Trouxe biscoitos?
- E dos bons! Virei a fornada antes do galo cantá.
- De certo Sá Luzia. Bárbara! Leve a capanga com os biscoitos lá na cozinha e pede pra Zefa guardar enquanto eu acerto os cobres aqui com sua mãe, minha filha.
- Chica! antes de ocê contar os cobre, quero te fazer um alerta.
Vovó parou de tirar o dinheiro do bolso da casaca e olhou assustada:
- O que foi Sá Luzia? Sou toda ouvidos, pode falar.
-Chica! Tem gente miúda daqui dos seus andando lá pelas bandas do capuera do açude seco. Eu vi uns quatro... Dois minino, uma minina e um outro que não consegui vê direito purque correu pra trás do piquizêro quando me viu.
- Que coisa Sá Luzia! O que há de ter levado essa garotada sem juízo tão longe?! Pode deixar que vou tratar disso.
- De certo Chica. Só Tô te falano porque ocê sabe o que eu passei quando a bicha pegou Pureza por lá... Não vim fazê candonga, não! Deus que me perdoe! Inté tomei a comunhão na missa de hoje, antes de passá aqui.
Vovó bem sabia que havia um certo exagero naquilo, mas claro, iria nos dar castigo por termos saído sem permissão. Fizemos tudo direitinho para ninguém perceber e Sá Luzia estragou tudo... Agora não teremos mais tardes livres no campo de araçás!
Sá Luzia, como muita gente aqui da região, tem muita superstição. O ocorrido com Maria Pureza é tão antigo! Do tempo que Vovó ainda era menina, mas o povo daqui faz questão de manter a história viva e com isso sustentam uma superstição que prejudica os mais novos.
Pureza era uma das filhas de Sá Luzia. Contam que numa quinta-feira santa ela foi mandada pela mãe a buscar lenha para acender o fogo na sexta-feira da paixão.
Naquele tempo não se podia catar lenha nem fazer nada na sexta-feira da paixão, só mesmo acender o fogo para esquentar o almoço que era preparado no dia anterior.
Pureza pegou a corda, o facão e pano de rodia. Seguiu para capuera onde tem muito pau de lenha seco pelo chão. Arranjou um feixe bem grande, separou e aproveitou para apanhar uns araçás...
Entre uma planta e outra achou um pé bem carregadinho e foi logo enfiando a mão para separar os melhores por galhos. Nessa hora, uma cascavél lhe deu um bote e a moça caiu pouco distante do feixe de lenha.
Entendendo que a filha estava demorando por demais, Sá Luzia, que ainda nem usava manguara, seguiu para capuera em busca de Pureza. Não foi difícil encontrar o feixe de lenha amarrado quase à beira do caminho, mas doloroso por demais encontrar a filha caída e desfalecida. 
Tentou reanimá-la inutilmente e então, correu para buscar ajuda com os seus. No caminho, deu de encontro com Zé da Caixa e seus companheiros da banda e foi logo contando o ocorrido e pedindo ajuda. Os homens acharam que Pureza meia morta. Pelo roxo no braço, Zé da Caixa foi logo adiantando:
- Foi uma bicha! E tem que achá ...
- Valei-me minha Nossa Senhora! Num deixa essa peçonha matá minha Pureza... Ô Jesus, pelo sangue de Cristo!
Os homens deram uma vasculhada nos arredores e logo viram a cobra enroscada debaixo do pé de araçá.
- Olha ela ali! Mostrou Tião Tramela.
Ele pegou um pau e apertou a cabeça da cobra num golpe certeiro.
Aos prantos de Sá Luzia, levaram a moça para casa. Quando entraram e colocaram o corpo em cima da mesa foi aquela gritaria...
Sá Tônica, avó de Pureza, sabia simpatia para curar veneno de cobra. Mandou trazer cachaça e uma faca bem quente. Jogou meio copo de cachaça na ferida e rasgou a pele. Tomou uma dose e chupou o sangue já engroçado e seguiu cuspindo. Depois pediu o guizo da cobra para torrar e fazer um pó que jogaria sobre a ferida.
Nessa hora, lembraram que a cobra morta ficou debaixo do pé de araçá. Logo Tião Tramela ofereceu-se para buscar o guizo. Foi num pé e voltou no outro, porém ... a cobra tinha desaparecido. Todos ficaram desesperados e como o tempo não espera um milagre acontecer, mesmo a poder de reza forte durante toda a noite, a moça amanheceu morta.
Desde então, as pessoas passaram a ter medo de andar naquela capuera. Dizem que a cobra não morreu e está escondida à espera de quem a feriu, para picar... e como cobra não diferencia gente, na dúvida acham que o melhor é não andar por lá, nem mexer nos araçás da cobra. Pode tamanha besteira?
Vendo Sá Luzia tecê conversa assim com Vovó, fiquei com muita raiva, mas também com muita pena do sofrimento e das bobagens  em que ela acredita. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Sá Luzia quitandeira


 Imagem google de sonspercutidos.blogspot

Hoje estava colhendo flores de São João na cerca à beira da estrada quando ouvi uma voz:
- Dia menina!
Olhei assustada e  respondi :
- Dia Sá Luzia!
- Tô querendo um dedo de prosa com vossa Vó.
-  Claro! Vamos chegando que a senhora já é de casa...
Parei de colher as flores e fui acompanhando as duas até a varanda onde Vovó limpava lágrimas de Nossa Senhora para fazer terços novos. Abri a porteira. Ela passou na frente e e seguiu chamando com sua voz não sei se roca ou já fraca pela idade.
- Ô de casa! Chica!? Tô entrando!
Sá Luzia sempre vem acompanhada de sua filha Bárbara, a única solteira dos dezesseis filhos que gerou. É uma moça de idade, muita acanhada, que vive de ajudar e acompanhar a mãe. É uma gente de vida simples, que se não for tratada com cerimônia fica ofendida. Por isso, larguei o que estava fazendo e fiz as vezes com as visitas. Caso contrário, levaria um pito de Vovó.
Sá Luzia é quitandeira das boas. Toda semana ela passa por aqui  trazendo muitos biscoitos para vender. Vende estrada a fora, batendo de casa em casa e mutias vezes nem precisa chegar até a cidade. Os biscoitos são vendidos no caminho. Sua fama já correu nas cidades vizinhas e muita gente que passa por aqui não vai embora sem levar as delícias feitas por ela. Dizem que é tradição de família. No tempo que Vovó era menina quem vendia as quitandas eram Sá Tônica e Sá Cota, mãe e avó dela. E pelo jeito Bárbara seguirá a tradição...
Tem um jeito muito antigo de se vestir. Usa uns vestidos longos, brancos, de algodão cru bem alvejado. Sempre o mesmo modelo de saia rodada, mangas três quartos e gola. Trás na cabeça um lenço de chita amarrado debaixo do queixo. Se faz frio , diz que é para livrar da friagem os ouvidos. Se faz calor, usa do mesmo jeito e com um sombreiro por cima. Não calça sapatos fechados, somente um precata de couro de boi feita pelos seus. Nunca sai sem uma manguara e os biscoitos coloca numa capanga de algodão bem grande que carregada dependurada no ombro. Ela trás uma e a filha nos dois ombros. Tem a pele muita fina e enrugada. Já é quase nonagenária. 
Por essas bandas, todos se conhecem e sabem um pouco da vida de cada um. Dizem que ela nasceu no tempo dos escravos, que foi moça muito bonita e enterrou três maridos. O primeiro casamento foi aos treze anos, com um homem bem mais velho e arranjado pelo pai. Teve quatro filhos e uma vida de fartura até que o homem caiu doente e durante anos ficou cuidando do enfermo com banhos de Sol.
Viúva, encontrou um marido mais jovem e teve outros doze filhos. Viveram felizes durante anos até  que Zé Gato morreu. Nunca soube o motivo do apelido desse homem, mas os mais velhos lembram bem desse tal Zé Gato.
O terceiro casamento foi complicado. Não teve filhos. A idade já estava avançada, tanto dele quanto dela. Contam que era um homem  que andava descalço e talvez por isso acumulava bichos de pé nas rachaduras do calcanhar. Serviço para os netos de Sá Luzia, que em respeito à avó, aliviavam os pés do avô emprestado, conhecido por todos como Antônio Corona. O casamento não durou muito, mas antes de morrer Coroné arruinou a vida de Sá Luzia vendendo o terreno onde moravam e tinham roça de alimentos e criação de animais, para um fazendeiro dono das terras que ficam do outro lado do rio. Dizem que o ricasso queria o rio só para ele e vinha comprando terras que margeiam o leito.
Como era analfabeto, Coroné firmou o dedo polegar no tinteiro e carimbou o papel que passava as terras para o nome do tal fazendeiro. Sem documentos que comprovavam a posse das terras, herança de seu primeiro casamento, Sá Luzia não viu o dinheiro e ficou sem ter onde morar, tendo que se sujeitar a uma morada de sapé em terras de gente conhecida e sobrevivendo da venda de suas quitandas.
De todos os biscoitos que faz, o que mais gostamos aqui é o biscoito de araruta com rapadura. Muita gente já ganhou dela a receita, mas ninguém consegue acertar o ponto. Imagino que ela nunca fez questão de contar o segredo por completo... Os outros também são muito saborosos e Sá Luzia é daquelas que só usa a farinha e o polvilho que ela mesmo prepara. 
As mulheres da família fazem bons biscoitos também, mas Vovó é freguesa antiga e nunca deixa de comprar essas delícias. Ela sabe bem como ajudar as pessoas...

domingo, 8 de julho de 2012

Bafafá na praça

E tudo aconteceu assim...
O dia mal tinha amanhecido e um alvoroço muito grande acontecia na praça. Todos corremos para ver o que havia de certo ou  errado que reunia tanta gente e num trololó danado. Vovó não gostou da nossa curiosidade e foi logo dando seu palpite certeiro:
- É coisa de Terninho ...
Terninho é o apelido de João dos Moreira. Um sujeito metido a valentão, que só anda de terno engomado, usa um sapato maior que seu pé e um chapéu de feltro cinza todo esfarrapado.Sempre que alguém se mete a debochar de seus sapatos ele parte pra cima com toda raiva do mundo.
Não demorou muito e ficamos sabendo que desta vez o desafeto partiu de Bendito, um outro tipo valente que adora se meter na vida alheia. De longe ouvia-se os desatinos.
- Tá me chamando de pé grande?   
- Imagine ... O seu sapa ...
- É grande o suficiente para esmagar cabeça de cobra. Seu Bendituçu ....
E Terninho não parava de falar até que por um instante, do nada, fica mudo e de olhar fixo para o fundo da praça. 
Todos olham naquela direção, mas ninguém se atreve a dizer uma palavra. Lá está ela! Dona Roxona! 
Sim, ela que antes era conhecida por Quitéria de Inácio, agora é dona Roxona, por andar  usando roupas roxas desde que se tornou viúva de Inácio Cortez.
É ela o único amor da vida de Terninho. Amor não correspondido. 
Na verdade, ele nunca teve coragem de se declarar a ela. Pensava que uma mulher tão linda não haveria de querer um boçal como ele, com aqueles sapatos grandes e um chapéu surrado cobrindo-lhe a cabeleira despenteada.  
E assim, como um toque de mágica, Terninho foi se recompondo e se preparando para a chegada de sua amada. Bonita, mesmo naquele vestido roxo! Passou com um sorriso fosco, seguindo o som do sino da matriz.  
Bendito que não é bobo, foi saindo de mansinho antes que a dama passasse e o bafafá voltasse a pegar fogo. 
O povo acostumado, mas nem por isso desatento ao fato, também foi esvaziando a praça. E terninho, mais uma vez sentou-se no banco da praça à espera da missa acabar...