Esse blog é uma homenagem às minhas avós, às avós do meu filho e a todas as mulheres que tem a doce experiência de serem avós. Acredito que no âmbito familiar poucas coisas são tão saudáveis quanto o estar na casa da vovó, desfutar de sua companhia, de seus quitutes e fazer descobertas diárias sobre o mistério que envolve a distãncia entre as coisas do tempo da vovó e a nossa vida cotidiana, principalmente quando somos crianças.

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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Dona Maria quitandeira e seus biscoitos de rapadura

imagem e receita Aqui
Todos a conheciam por Maria do Seu Abelardo ou Maria do Sô Abelardo, depende da língua de cada um. Menos eu. Nunca tinha ouvido falar nessa senhorinha que já beirava lá os seus noventa e quase cem anos.
Seguia forte e firme na profissão de quitandeira. Quitandeira na família de meu avô materno é tradição. Parece uma doença que não tem cura, um carma, uma loucura tão grande que até quem é de fora e num elance entra pra família, acaba contaminado.
Era final de tarde no mês de setembro. Tínhamos caminhado pelas casas da parentela de mamãe. A estrada coberta de poeira, margeada por um cerrado sedento, a sede nos matando e a vontade de comer uma quitanda eu nem quero detalhar.
De repente mamãe parou diante de casa que mais parecia ter sido tirada do caderno de desenho de meus irmãos mais novos. Tinha uma janela, uma porta e um telhado em V de cabeça para baixo. Nada de fumaça, nada de cheiro bom saindo do forno... Sede e fome tínhamos aos montes. Éramos cinco derrotados naquele sertão.
- Ô de casa!
Bate palmas ... cachorro late ... de- re-pen-teeeee abre-se a janela,  uma senhorinha muito resolvida põe  o rosto e fica esperando nossa identificação:
- Sou filha de Marcílio, neta de Sá Luzia sua tia e prima de Barba, irmã de Deolinda. Afirmou mamãe.
- Vamô entrando. Océs  num vieram em boa hora. Eu vou sair agorinha para ir à missa lá grupo.
-Tem missa lá na escola hoje? Que bom! É pertinho. a gente não vai demorar não. Só queria um pouco d`água pras crianças. Respondeu mamãe muito sem graça.
Fiquei com o rosto queimando feito brasa. Que vergonha! Nunca tinha visto alguém falar assim com as visitas. Na casa da Vovó sempre esperamos as visitas irem embora para depois sairmos. Vai entender essa gente antiga... Por um tempo todos ficamos calados até que saiu lá do quarto um homem de meia idade todo serelepe e foi logo se apresentando como o filho caçula de dona Maria .Foi estendendo a conversa e contando a sua vida em alguns minutos. Como podia falar tanto assim? O mais engraçado é que ele disse que era aposentado por que tinha doença grave do coração e não podia fazer nenhum esforço, nem o simples esforço de varrer um quintal, mas na sua serelepisse estava todo perfumado para ir dançar lá no bailão...
Enquanto esperávamos a água e o homem tagarelava, fiquei observando a minuscula sala daquela casa. A parede estava toda enfeitada com quadros: uma foto de dona Maria e de seu finado marido Abelardo, um quadro do coração de Jesus, outro do coração de Maria, santo Antônio, a Santa Ceia, um retrato do Papa e um enorme terço com contas de madeira que disseram ter vindo lá de Aparecida do Norte.
Quando dona Maria entrou pela sala e nos trouxe o jarro de água fresca foi um alívio. Mas num instante o sufoco apertou novamente quando sentimos um cheiro delicioso de café fresco. Mamãe percebeu nossa inquietude e levantou-se agradecendo pela água e dizendo que já iriamos embora. Nesse momento, o tal serelepe cujo o nome eu nunca fiquei sabendo, disse:
- Vai embora não! A mãe cabô de cuá um cafezím pra nóis.
Dona Maria foi para cozinha levando o jarro vazio e voltou com um bule verde meio descascado e umas canecas bem antigas e pouco esmaltadas. O cheiro era bom. Ninguém recusou o café. Mamãe percebendo nossa fome começou a conversar com dona Maria sobre as quitandas... quem sabe ela se lembrasse de uns biscoitos guardados numas latas que desde menina eram famosos na família!?
- A senhora ainda faz aqueles biscoitos de araruta com rapadura? 
- Faço.
Começou a dar a receita para mamãe e nós com o estomago nas costas...
- Como ele fica? Perguntei.
- Eu tenho uns lá dentro. Océ qué experimentá?
- Não obrigada! Quero ( em pensamento ).
- Vou buscar!
Ela entrou para o quarto e eu estranhei. Biscoitos no quarto? Foi aí que mamãe me explicou que ela vende os biscoitos. Faz muitos de uma vez e guarda em sacos brancos dentro de latas bem grandes.
Trouxe os biscoitos num prato esmalto branco. Para nós eram os melhores que já tínhamos comido, mas a aparência ainda me é esquisita....
E foi assim que conheci dona Maria, parente distante. Resolvida como ela só. Famosa pelas quitandas. Dizem que quando ela saia com o balaio cheio e vinha caminhando em direção à praça, andava muito pouco para ver a mercadoria acabar.
Gente real, no reino do povo simples e feliz. Nessas horas é que entendo porque a felicidade está nas coisas simples.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Maneco chapeleiro


imagem de queronomeucloset
Dizem por aí que Maneco anda usando os chapéus que fabrica antes de entregar ao freguês. Como é um dono da  chapeleira e muito bom chapeleiro, muita gente fica na dúvida se ele faz um modelo e usa como amostra ou se dá uma voltinha com o chapéu e depois vende.
De tanto ouvir comentários passamos a observar seu comportamento. Zé Grilo encomendou um modelo panamá marrom escuro e contou para todo mundo que iria à festa da rapadura batida de chapéu novo.
Ontem, Maneco esteve aqui na casa da Vovó. Entrou e logo colocou seu chapéu na chapeleira. Nós que não somos bobos, tratamos de examinar o trem. Para nossa surpresa era o chapéu modelo panamá marrom escuro. Será o que Zé Grilo encomendou? Logo pensamos. O jeito foi botar a cabeça para funcionar.
Tonico Manga tinha vindo  passar o final de semana com Zefa. Ele é afilhado da afilhada dela. Um meninote muito travesso. Lá pelas bandas do Capão Redondo onde ele mora, a fama de Maneco já havia chegado e ele ficou sabendo por nós da encomenda de Zé Grilo. Idéias não faltaram...
Tonico sugeriu que jogássemos um pouco de mijo de água na aba, porque quando Zé Grilo estivesse usando seu novo chapéu, daria para saber se era o mesmo que Maneco estava usando pelo cheiro. O cheiro ia ficar forte, mas Zé Grilo é tão entusiasmado e distraído que provavelmente nem perceberia ao receber sua encomenda.
Dito e feito. Distraíram o Maneco e levaram o chapéu até o estábulo. Lá estava a égua Rinchadinha, que não demorou para fazer o serviço... No sol quente o panamá secou e logo voltou para o lugar. 
Ao ir embora, depois de muito conversar com Vovó, Maneco nem sentiu o cheiro do mijo, pois o cigarro de palha que tinha na boca cheirava mais forte.
No dia seguinte, Zé Grilo aparece todo saliente rodeando as barracas na praça. A banda tocava e o cheiro dos cavalos atrelados nos quatro cantos do lugar enganava bem o cheiro de seu chapéu. No meio da prosa eis que chega o Tonico atravessando a conversa de gente grande e exclama:
- Esse lugar aqui tem cheiro de mijo de égua!
Todos param, inspiram e concordam. Alguns soltam piadinhas. Tonico pára e olha para Zé Grilo. Aproxima-se e cheira seu chapéu.
- Chapéu novo?
- É! Encomendei e paguei caro pro seu Maneco lá na chapelaria.
- Ah, sei. Então o mijo deve ser da Rinchadinha... Seu maneco foi lá na chácara ontem com um chapéu igual a esse e ele caiu no mijo da égua...
Na simplicidade de um bom caipira, Zé Grilo disse:
- O que não tem remédio, remediado está!

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Mineiros em romaria


Esse relato está baseado no que ouvi contar sobre um casal amigo de vovó. Casos verídicos - registrando memórias.
O casal Ferreira, entre os anos 70 e 80 do século passado, como tantos outros brasileiros foram vítimas da grave crise financeira que atingia os brasileiros.
A senhora Ferreira, sempre muito esperta, começou a pensar num jeito de melhorar o orçamento. Daí, resolveu colocar em prática uma idéia que haviam tido há muitos anos : organizar  caravanas em romaria para festas religiosas.
Naquela época, a maior parte dos moradores da vila eram católicos, quase ninguém possuía automóvel para viagens e grande parte gostava de dar um passeio de vez em quando. Talvez por isso tenha dado tão certo os negócios do casal Ferreira.
A senhora Ferreira era  muito bem relacionada na vizinhança. Conhecida por gostar de ajudar aos pobres e por participar de atividades religiosas na igreja. Então, era só  começar a vender as passagens para uma caravana e logo o grupo de romeiros se formava.
Conta-se, que a primeira dessas caravanas, foi organizada para a festa do Senhor Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas. Ônibus com lotação completa! O problema foi a falta de experiência do senhor Ferreira que, na hora de alugar o veiculo, buscou o mais barato porque queria ganhar um grande lucro com a venda das passagens ...
Na hora marcada para o grupo embarcar rumo a Congonhas, estacionou no local combinado  um ônibus maravilhoso por fora e horrível por dentro. Desapontados, todos logo  perceberam a falta de conforto. O senhor Ferreira,  ficou muito assustado e envergonhado com a situação...
Dizem que quando o motorista girou a chave, os bancos começaram a tremer e todos tiveram que tampar o nariz de tanta poeira que saia das laterais cheias de furos. Também há quem não se canse de rir do acontecido na volta a Belo Horizonte: dizem que um menino de pele bem escura que estava sentado na última poltrona encontrou um buraco nos fundos do ônibus e para lá logo entrou.
Ficando com medo, começou a gritar pedindo que acendessem a luz. Os outros meninos logo correram para ver o que estava acontecendo e quando olharam para dentro do buraco a única coisa que viram foi o branco dos olhos do menino. E  a partir daí começaram a chamá-lo de Antônio Preto. 
Outra viagem que deu o que comentar foi uma caravana dos Ferreira para Aparecida do Norte. Essa viagem foi muito esperada por todos porque iria passar pelo Rio de Janeiro. Um dia na praia, só quem é mineiro sabe o valor que tem. Não é por acaso que somos alvo de piadas quando o assunto é banho de mar. Sempre se tem uma engraçada história a ser contada.
Naquele tempo, as viagens eram demoradas porque parava-se muito. Não tinha perigo de assalto como hoje. Então a viagem prevista para sete horas de duração, deve ter demorado umas nove.
Enfim, chegaram na paria de Copacabana. Os rapazes, que já viajaram de calção de banho por baixo das calças, desceram correndo do ônibus e foram dar um mergulho. Aí aconteceu a primeira do dia: alguns ficaram com medo de entrar na água que estava na maré alta e outros começaram a provar da água  para ver se realmente era salgada.
Um guarda, percebendo a desorientação do grupo, ordenou ao motorista que estacionasse no Leblon. Para lá seguiram e ali deu-se um festival de acontecimentos. 
O senhor Jacinto e a dona Maria, portugueses e antigos comerciantes na vila, atravessaram a avenida e foram banhar as canelas nas águas do mar. Ficaram horas com as calças suspensas até o joelho e as canelas mergulhadas na água, enquanto observavam ao longe na esperança de ver algum navio igual ao que os trouxeram de Portugal na época da segunda Guerra Mundial.
Dona Rita não se cansava de pular as ondas quebradas. A filha do senhor Geraldo acendeu o cigarro do ladrão que tentava roubar sua máquina fotográfica. O rapaz que viajou de terno, com ele passou o dia na praia debaixo do sol ardente.
Mas o fato mais engraçado foi o ocorrido com o Ari e o Baiano. Eles resolveram nadar e ficaram boa parte do dia dentro da água. De súbito uma onda gigante  os pegou despreparados dando-lhes um belo caldo. Estaria tudo normal se o Baiano não estivesse de óculos dentro do mar. Ele viu que esse havia sido levado pela onda e gritou pedindo ajuda ao Ari. Esse abriu a boca para responder ao companheiro e eis o que lhe acontece: sua dentadura saiu da boca! O saldo foi um óculos e uma dentadura perdidos no mar.
São muitos os casos que se contam sobre as viagens organizadas pelos Ferreira. É raro encontrar na vizinhança uma casa onde pelo menos uma pessoa nunca tenha viajado com eles. Se eles tivessem feito um diário, hoje em idade já avançada, poderiam publicar um livro!